Reisado Mestre Dedé de Luna durante as celebrações do Dia da Mulher Negra Latino-americana na Praça 7 de setembro na cidade de Milagres-CE, 2024. – Foto: Carlos César Pereira de Sousa
Escrito por: Carlos César Pereira de Sousa,
professor, historiador e escritor
No dia 27 de julho de 2020 a página online do Diário do Nordeste, um dos jornais de maior circulação no estado do Ceará passou a veicular uma curiosa reportagem com a seguinte manchete: Origem do cearense: nórdicos superam índios e negros na genética. O texto é de autoria dos jornalistas Nícolas Paulino e Alessandro Torres que se fundamentam numa pesquisa do professor Luís Sérgio Santos da Universidade Federal do Ceará.
Segundo esses jornalistas o trabalho do professor Luís Sérgio Santos sobre a genética dos cearenses identificou num grupo de 160 indivíduos escolhidos nas diversas regiões do estado a suposta predominância do DNA nórdico (suecos, noruegueses, finlandeses, dinamarqueses e franceses) na composição da genética das populações do Ceará. A reportagem anuncia em letras garrafais o seguinte:
Pesquisa inédita no Brasil analisou 160 amostras humanas de todas as regiões do Estado e revela que, mais do que índios e portugueses, a formação do cearense se deve a povos vikings que dominaram a Europa séculos atrás. (Disponível em:https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/origem-do-cearense-nordicos-superam-indios-e-negros-na-genetica-1.2970540)
O argumento principal do texto é sustentar a partir dos dados obtidos pela pesquisa do geneticista um antiquíssimo pressuposto da intelectualidade e das elites de poder do Ceará, tal pressuposto foi elaborado nos fins do século XIX e sobreviveu ao longo do século XX e como podemos ver pela reportagem do Diário do Nordeste e pela pesquisa de Luís Sérgio Santos chegou inalterado ao século XXI.
Este pressuposto não é outro senão aquele esboçado pelos intelectuais do Instituto do Ceará de que nesse Estado não há negros e que quase não houve escravidão por aqui, pois mesmo os raros escravizados que aqui viveram eram tratados como pessoas da casa, membros da família que os acolhia com cordialidade e eram vistos mais como crias da casa senhorial do que como escravos de senhores cruéis.
Como podemos ver na citação acima a reportagem afirma que os cearenses não seriam nem descendentes dos indígenas, nem tampouco dos portugueses, estes até tiveram certa influência genética sobre o cearense, mas nas veias dos homens e mulheres do estado do Ceará corre mesmo é sangue nórdico. Para a reportagem o elemento africano nem sequer é digno de ser citado como tendo contribuído para a formação do povo cearense.
Deliberadamente as heranças africanas dos cearenses são apagadas, enquanto a herança indígena e portuguesa aparece ainda que relativizadas a favor a predominância nórdica, a africana nem mesmo é considerada como possível. No desenvolvimento do texto os autores buscam um modelo de família cearense para ilustrar e sustentar seus argumentos.
Assim eles trazem para a reportagem a fotografia do casal Peter Aller, dinamarquês e de sua esposa Ana Paula Bertuleza, cearense, juntos eles geraram um descendente, o Thor, um menino que segundo a reportagem é o protótipo do cearense de que nos fala a pesquisa genética e a reportagem.
Thor herdou os cabelos loiros, os olhos, a pele nórdica e a inteligência de seu pai europeu, pois fala três línguas. Mas Thor traz em si características cearenses do sangue materno, que são, o gosto pelas caminhadas nas dunas, e o fato de gostar de comer farofa e adorar feijão preto.
A mãe segundo a reportagem possui traços indígenas, sendo ela uma mulher parda, no texto os autores evocam o argumento do pesquisador da UFC para afirmar que a predominância do fenótipo pele parda no Ceará deve-se ao fato de nesse Estado haver uma intensa herança genética indígena, os genes dos “índios”, pois sendo a genética do “índio” muito forte ela dilui o branco nórdico e cria o pardo cearense.
Ainda amparada na pesquisa de Luís Sérgio Santos a reportagem intensifica sua tentativa de negar a presença negra no Ceará afirmando com o geneticista da UFC que o elemento negro não teve tanta força no Ceará, pois como já afirmou na década de 1960 o escritor Parsifal Barroso a mão de obra escravizada quase não foi utilizada na Província do Ceará.
Ao lermos a reportagem do Diário do Nordeste escrita e publicada há aproximadamente cinco anos percebemos o esforço discursivo da branquitude cearense em manter sua autoimagem narcísica criada pelos intelectuais do Instituto do Ceará.
O Instituto do Ceará foi inaugurado em 1887 pelos escritores, políticos e jornalistas cearenses que haviam congregado nas associações abolicionistas do Ceará, eram membro da elite conservadora liberal, representantes das oligarquias do interior da província ou da classe mercantil de Fortaleza. O Instituto do Ceará foi criado exclusivamente por homens brancos que exerciam cargos públicos ou funções políticas na província ou no império, e assim essa instituição continuará sendo ao longo do século XX, isto é, reduto de intelectuais brancos que representavam os interesses simbólicos e políticos da elite cearense.
O Instituto do Ceará logo se transformou no porta-voz da intelectualidade cearense. O que os membros da instituição escreviam, publicavam ou pronunciavam em seus discursos durante as sessões ordinárias ganhava imediatamente valor de verdade. Os intelectuais que nele congregavam atribuíram a si o direito de dizer quem tinha ou não voz na história do Ceará.
Tomando a ideia de criar uma história e uma historiografia para o Ceará como principal objetivo de sua atuação intelectual os homens dessa instituição se fizeram os defensores de uma ideia de civilização para o Estado. Esse ideal civilizatório já vem expresso na publicação Estudos para a história do Ceará que Joaquim Catunda lançou em 1886.
Nesse trabalho historiográfico, Catunda se propõe a narrar a história da Província do Ceará desde às suas origens pré-históricas até o século XIX. Nele acompanhamos o esforço do autor para vincular estas origens do povo cearense ao velho mundo europeu.
Os indígenas aparecem no texto como selvagens que ao não aceitarem o julgo da dominação colonial precisaram ser exterminados ou escravizados para que a civilização progredisse no Ceará, e os negros são descritos como uma raça inferior trazidos pelos colonos da província com o objetivo de auxiliá-los na ocupação da terra.
O projeto de civilização imaginado pela elite cearense pressupunha o silenciamento das vozes negras e o apagamento da presença indígena no Estado. Desse modo, ainda na segunda metade do século XIX oficializa-se o suposto desaparecimento dos indígenas do território cearense e a partir de 1884 inicia-se o projeto discursivo da intelectualidade liberal conservadora como também a republicana de invisibilização e alienação do negro da história, da cultura e da espacialidade do Ceará.
Na sessão do Instituto do Ceará de 17 de maio de 1888, João Batista Perdigão de Oliveira profere um discurso onde procura evidenciar o protagonismo do Ceará no processo de abolição da escravidão. O texto é uma tentativa de vincular os abolicionistas brancos cearenses à glória obtida pelos políticos do império que se congregaram em torno da princesa Isabel Cristina quando esta se viu obrigada a assinar a Lei Áurea em 13 de maio.
Se a Bahia, por ser a primeira das nossas irmãs avistada pelo nauta feliz, coube o significativo epíteto de Primogênita de Cabral; não poderá deixar de caber o de Primogênita do Abolicionismo, à pátria feliz de José de Alencar. Foi ela a primeira que, com o mais agigantado civismo, resolveu o dificílimo problema, mostrando às suas irmãs timoratas, como resultado esmagador, a paz e a prosperidade. O Ceará livrou o seu solo de escravos sem a mínima comoção social, e desmentiu todas as previsões aterradoras: consolidou a tranquilidade pela justiça e filantropia, saldou suas dívidas sem dano a ninguém, e acumulou saldos, que são o melhor documento de nosso próspero estado financeiro. (Disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1888/1888-Sessaode17Maio1888.pdf)
O discurso de João Batista Perdigão de Oliveira já ecoa claramente a imagem e autoimagem que a branquitude cearense fazia de si e queria para o Estado. Nele observamos que toda a luta negra contra a escravidão foi sumariamente apagada. A Revolta dos Jangadeiros de 1881, as lutas da preta Tia Simoa e de José Napoleão, a atuação de Francisco José do Nascimento, a importante ação antiescravista de Aninha Gata e outros pretos e pretas resistentes são esquecidas.
Para o autor somente o papel desempenhado pelos políticos, jornalistas e intelectuais cearenses brancos no combate a escravidão teve relevância no processo das emancipações coletivas de 25 de março de 1884. O processo emancipador coletivo levado a cabo pelas câmaras de vereadores nos vários municípios e vilas cearenses a partir de janeiro de 1883, intensificado em março de 1884 e concluído em dezembro de 1886 quando o município de Milagres no sul do Ceará finalmente emancipou seus escravizados foi fruto das lutas negras em toda a Província do Ceará, mas João Batista Perdigão de Oliveira não está nem um pouco disposto a reconhecer o protagonismo negro na abolição do trabalho escravo, sua fala e seu texto elaboram uma versão pacífica da transição do regime escravocrata no Ceará para prática do trabalho livre na Província.
Segundo ele o Ceará se redimiu da vergonhosa mancha da escravidão sem nenhum conflito de classe ou de raça, sem lutas políticas ou sociais. O Ceará demonstrou ao Brasil que era possível acabar com a escravidão sem o temor de uma convulsão social, sem o perigo de uma revolta negra. Tendo extinguido seus escravos de forma tranquila e exclusivamente por meio da filantropia dos senhores brancos que perceberam o quanto era injusto e desumano explorar o negro por meio da escravidão, o Ceará mostrou-se perante o Império do Brasil como uma terra civilizada e muito à frente das outras províncias sempre relutantes em acabar com a escravidão em seus territórios.
Começava nesse momento a se inventar a Terra da Luz. Fora o político e jornalista negro José do Patrocínio que num arroubo oratório elegera o Ceará como uma terra de liberdade, iluminação e civilidade ainda em 1883. Segundo uma matéria de José Aurélio Câmara publicado no jornal O Povo em 1973, José do Patrocínio estava em Paris quando recebeu um telegrama anunciado a emancipação dos escravizados no Ceará, e mais uma vez honrou os cearenses ao proclamar a Província como Terra da Liberdade iluminada pela razão.
Consta que no mesmo dia em que recebeu a notícia do fim da escravidão no Ceará José do Patrocínio reuniu amigos e intelectuais franceses num restaurante parisiense e lá celebrou por meio de um banquete o acontecimento. Durante a celebração o jornalista brasileiro discursou para os presentes e voltou a saudar o Ceará como Terra da Luz, lugar da liberdade e da civilidade.
Os jornais do Rio de Janeiro logo publicaram esses discursos e artigos de José do Patrocínio conclamando as outras províncias e o próprio império a seguir o exemplo do Ceará. Os intelectuais congregados no Instituto do Ceará abraçaram imediatamente essa denominação de Terra da Luz, pois ela vinha num momento bem oportuno, isto é, exatamente no período em que eles começavam a forjar uma identidade para o Ceará.
A criação de uma identidade cearense começara a ganhar contornos nítidos na década de 1880 e prosseguiria ao longo do século XX. Flagelado pela crise climática de 1877, a chamada Seca dos Mil Dias o Ceará viu sua frágil economia agrária e pastoril ser arruinada pela estiagem, assim os intelectuais e políticos cearenses assistiram consternados o nome da província ser citado nos jornais de todo o país, nas reuniões ministeriais e na tribuna do parlamento imperial como uma terra de miséria, fome e selvageria. Relatos de canibalismo entre os flagelados da seca, da existência de campos da fome e das ruas da capital Fortaleza tomadas de famintos e urubus devorando as carcaças dos mortos de fome e peste se espalharam pelo Brasil inteiro.
Desse modo era preciso engendrar uma novíssima imagem do Ceará que suplantasse aquela de terra da miséria e da fome que se cristalizara ao longo dos três anos de seca. A imagem da Terra da Luz, Primogênita da Abolição, Terra da Liberdade, veio no momento preciso em que as elites intelectuais e políticas desejavam forjar uma nova representação de si e de seu espaço de mando e poder.
Valendo-se das práticas discursivas das ciências humanas os intelectuais cearenses irão estabelecer novos regimes de verdade para o Ceará. Para inventar sua própria imagem narcísica a branquitude cearense precisava suprimir os pretos e pretas da história. E assim deram início ao projeto de negação do negro cearense.
O primeiro passo foi dado na direção de demonstrar que o movimento abolicionista havia sido capitaneado pelas brilhantes mentes brancas cearenses iluminadas pela razão e pela civilidade europeia. Esses homens se lançaram contra a aberração da escravidão, pois se envergonhavam de viver numa pátria e de habitar um lugar manchado pela escravização do negro. Eram pessoas que por trazerem em si os melhores valores da civilização europeia não aceitavam ver sua nação envergonhada perante as outras nações civilizadas do mundo, e para livrar o Brasil e o Ceará dessa vergonha não hesitaram e doaram suas energias e capacidades intelectuais pelo bem da pátria. Além dessa iluminação e desse desejo pela libertação do Ceará e do Brasil, esses homens eram filantropos, pois compreendiam o sofrimento da raça negra e se compadecendo desses “infelizes” iniciaram as apaixonadas jornadas abolicionistas que pôs fim a escravidão no Ceará e no Brasil.
O trabalho de silenciamento e apagamento das lideranças negras cearenses na luta contra a escravidão foi tão eficaz que até mesmo na fotografia oficial dos abolicionistas o importante militante Francisco José do Nascimento aparece apenas em segundo plano escondido atrás de inúmeros rostos brancos todos vestidos a moda europeia.
Ao longo do século XX se fabricaria uma imagem fugidia do Dragão do Mar e se apagaria o nome das outras lideranças negras tão importante quanto a de Chico da Matilde, isto é, Francisco José do Nascimento.
Mesmo os artistas cearenses que celebraram as emancipações coletivas de 25 de março de 1884 em quadros, poesias, hinos, músicas não falam dos negros, celebram apenas o suposto protagonismo branco. É o caso de Raimundo Cela que ao pintar na década de 1930 um quadro celebrativo dos cinquenta anos da abolição no Ceará mostra apenas negros submissos aos brancos, negros solicitando a benevolência dos brancos para que estes se compadecessem e lhes ofertasse a liberdade do cativeiro.

Percebemos através dos inúmeros artigos publicados na Revista do Instituto do Ceará e na historiografia cearense escrita no decorrer do século XX que os intelectuais cearenses vão definir quem deveria ficar excluído do projeto de civilização da branquitude cearense e esses silenciados serão os negros e os indígenas.
Como dissemos, o silenciamento do negro cearense começa ainda durante as comemorações das emancipações coletivas de 25 de março de 1884 e prossegue século XX adentro com o apagamento do negro cearense. Para criar a imagem do Ceará civilizado era preciso negar o Ceará, isto é, negar o cearense negro, indígena, pobre. Era preciso negar que houvera escravidão no Ceará, que ocorrera o extermínio dos povos indígenas, precisava-se negar a resistência negra contra a escravidão, as lutas dos pretos contra a opressão escravista.
A negação da escravidão no Ceará e a consequente negação da presença do negro no Estado já pode ser encontrada no final do século XIX nos trabalho de Joaquim Catunda, Estudos para a História do Ceará, neste livro o autor afirma que as condições agrícolas do Ceará nunca solicitaram grande número de braços negros. Esta mesma posição será adotada por Capistrano de Abreu ao afirmar que a economia do Ceará por estar voltada principalmente para a criação de gado não demandou o uso de mão-de-obra escravizada, pois quando algum senhor cearense tinha escravos estes serviam principalmente como negros velhos e babás que não sofram o peso do castigo do eito.
Estes discursos serão endossados por outros intelectuais cearenses que os converterão em regimes de verdade sobre a história do Ceará. Ao afirmar que os negros escravizados nas casas-grandes cearenses não sofriam castigos nem trabalhavam duro como os pretos escravos das outras províncias, Capistrano de Abreu está repercutindo uma falsa visão da escravidão que já circulava entre a branquitude do Ceará.
O mito da escravidão branda no Ceará será construído pelos intelectuais do Instituto do Ceará e vai servir explicitamente aos seus propósitos de criação da autoimagem narcísica das elites. A maior parte dos homens de letras cearenses que fundaram o instituto e dele farão parte até hoje em pleno século XXI pertenciam, pertenceram ou pertencem às elites econômicas e de poder do Estado, logo ao produzirem esse mito de uma blandícia escravista no Ceará estavam e estão apenas defendendo seus ancestrais brancos escravocratas e a eles próprios como herdeiros dessa elite escravizadora.
Inúmeros trabalhos acadêmicos publicados na Revista do Instituto do Ceará ou de forma independente até recentemente procuram demonstrar que no Ceará a escravidão quase não existiu e quando existiu não foi violenta como aquela praticada em Pernambuco, Paraíba, Bahia. O negro escravizado no dizer de Paulino Nogueira presidente do instituto na década de 1880 e outros intelectuais também sócios da instituição era tratado como pessoa da família, um amigo íntimo da casa.
Esse trabalho discursivo de apagar a história da escravidão no Ceará foi empreendido por vários intelectuais cearenses, dentre os já citados acima ainda podemos citar mais alguns como Antônio Bezerra de Menezes, Pedro Alberto de Oliveira, Raimundo Girão, Oswaldo Barroso.
Pedro Alberto de Oliveira escreveu e publicou em 1995 na Revista do Instituto do Ceará o artigo Cultura Negra e Negritude no Ceará. É um texto que procura fazer a defesa do suposto desinteresse dos cearenses pelas pautas políticas negras em ebulição no ano do tricentenário da morte de Zambi, o líder quilombola dos Palmares. O artigo de Pedro Alberto questiona as pessoas que saíram em defesa da exposição de desenhos 300 anos da morte de Zumbi do artista Audifax Rios.
O artigo de Pedro Alberto sai em defesa da Fundação Cultural de Fortaleza que foi acusada pelo jornalista Neno na sua coluna do Diário do Nordeste “É…” em 26 de novembro de 1995 de não apoiar Audifax Rios na realização e divulgação de sua mostra em homenagem ao líder quilombola alagoano. No seu texto Neno afirma que houve má vontade da fundação em apoiar a mostra e por isso nenhum negro apareceu para visitar a exposição que fora montada no Estoril sem os devidos cuidados merecidos pelas obras de arte, pelo artista e pela memória do homenageado.
Pedro Alberto de Oliveira não se contenta em sair somente na defesa da Fundação Cultural de Fortaleza ele argumenta no artigo de dez páginas que o motivo do desinteresse das pessoas negras pela exposição de Audifax Rios e dos próprios cearenses pela memória ou qualquer tentativa de homenagear Zambi e suas lutas empreendidas contra os invasores da Serra da Barriga adveio do fato de que no Ceará não há a presença de negros nem tampouco da cultura negra como ocorre em outros lugares do Brasil.
Para o escritor e pesquisador do Instituto do Ceará a participação do negro na cultura cearense é insignificante, pois os poucos elementos culturais afro-brasileiros presentes no Ceará são meras importações recentes vindas de estados vizinhos como Pernambuco e Maranhão, não representando uma força simbólica significativa na identidade cultural cearense. Além disso, a própria existência de negros no Ceará que justificassem uma homenagem à memória de Zambi dos Palmares é duvidosa, pois os poucos negros que assumem essa identidade racial no Estado não viam nenhuma necessidade de se politizarem, pois viviam muito bem integrados numa sociedade que os tratava com cordialidade e mansidão, uma vez que no Ceará não havia racismo e os poucos negros cearenses viviam muito bem integrados na população do Estado para que serviria uma exposição sobre negritude quando nas palavras de Pedro Alberto:
O conceito de negritude cearense é uma falácia. O lado mestiço do cearense é muito mais forte com o indígena do que com o negro. Daí um certo preconceito do cearense, principalmente do interior, para com a pessoa de tonalidade mais escura. O cearense não se identifica com o elemento de origem africana. (Disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Revapresentacao/RevPorAno/1995/1995CulturaNegraeNegritudenoCeara.pdf).
Desde a década de 1970, Pedro Alberto de Oliveira vinha escrevendo e publicando artigos sobre a escravidão, o negro e a abolição no Ceará. Nesses textos o autor procura sustentar através de sua argumentação a inexistência do conceito negritude cearense. Para ele, como deixa bem claro acima, todas as falas que procuram politizar o negro no Estado são apenas tendências políticas de ocasião que pessoas mal-intencionadas procuram tomar para si com o objetivo de se aproveitar de um modismo, tal modismo segundo o autor é a eclosão do movimento negro.
Considerando as ações políticas do movimento negro coisa de modista, isto é, uma mera cópia das lutas pelos direitos civis empreendidas pelos negros estadunidenses transplantada desnecessariamente para o Brasil e por sua vez para o Ceará, Pedro Alberto de Oliveira se posiciona francamente contra esse movimento por dois motivos: o primeiro motivo é o fato de que no Ceará não há negros nem negritude, pois como ele e seus pares do instituto sustentaram desde o século XIX quase não houve escravismo no Ceará; o segundo fato é que os poucos negros que existem no Ceará já estão satisfatoriamente inseridos no tecido social desde que seus ancestrais eram escravizados de famílias que os tratavam como pessoas amigas das casas senhoriais.
Desse modo não havendo negros no Ceará, nem negritude nem racismo para que levantar pautas políticas negras ou mesmo prestar homenagens e ressignificar lideranças negras no Estado? Os poucos negros cearenses nunca se interessaram por estas pautas porque segundo o autor eles mesmos desejam desaparecerem enquanto negros fundindo-se com o elemento branco para compor a mestiçagem cearense.
Este artigo de 1995 onde Pedro Alberto de Oliveira nega a existência da negritude cearense explora argumentos que o mesmo autor utilizou num outro texto seu de 1984 também publicado na Revista do Instituto do Ceará. Em A escravidão no Ceará na primeira metade do século XIX o autor utiliza dados do censo da população da capitania e da província do período do princípio dos oitocentos para demonstrar seu argumento da quase inexistência de negros no território cearense.
Provar que a parcela de negros compondo a demografia do Ceará era nula ou insignificante foi uma constante nos textos e livros dos intelectuais cearenses ao longo do século XX. Ainda no começo daquele século chegou-se a afirmar que o Ceará era um lugar privilegiado diante da confusão de raças que o Brasil se tornara após a abolição em 1888 e o advento da república em 1889.
Tomando a palavra negro e preto como sinônimas de escravo, Pedro Alberto de Oliveira e seus colegas intelectuais interpretam os dados dos censos a partir de sua leitura semântica, assim como em nenhum dos censos o número de escravos no Ceará jamais ultrapassou a quantidade de brancos então era possível concluir que o negro nunca foi predominante no Ceará.
No artigo de 1984 o autor apresenta os dados do Mapa dos habitantes da Capitania do Ceará Grande em 1808. Nesse registro demográfico, o Ceará aparece com uma população de 125.178 habitantes distribuídos assim: Brancos: 43.457, 34,5%; Índios: 12.383, 9,9%; Pretos: 23.444, 18,6%; Mulatos: 46.594, 37%. Como a parcela de pretos soma apenas 18,6% da população Pedro Alberto conclui que:
O Ceará na segunda década do século passado [XIX] não era uma “negrícia”, e a vida socioeconômica da província não deu condições para que isso viesse a ocorrer em nenhuma fase de sua história. (Disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1995/1995CulturaNegraeNegritudenoCeara.pdf)
Mais uma vez vemos aqui o uso do argumento econômico para sustentar a ideologia da ausência do negro no Estado do Ceará. Os historiadores vão acionar essa suposta inaptidão das terras cearenses para a prática agrícola como a explicação plausível para a inexistência da escravidão no território cearense e como escravo para eles é sinônimo de negro, para a pouca relevância da presença negra no Ceará.
Ideias semelhantes serão defendidas por Raimundo Girão no seu livro A abolição no Ceará. Esta obra procura reunir em um só volume as pesquisas e as ideias que foram sendo publicadas no decorrer da primeira metade do século XX sobre a escravidão, sobre o negro e sobre a abolição no Estado.
No livro o historiador volta a sustentar o mito da ausência do negro no Ceará, para ele mais uma vez os aspectos econômicos do território cearense inviabilizaram a escravidão em larga escala e essa inviabilidade do uso da mão de obra escravizada foi a responsável pela pouca ou nenhuma influência negra na mesclagem da etnia cearense.
Raimundo Girão defende que o negro cearense não teve força para interferir em nenhum aspecto da formação do povo do Ceará. Para ele nem do ponto de vista étnico, nem cultural, nem tampouco na propalada mestiçagem do cearense com o índio o negro teve força para intervir. Quando ele escreve na década de 1950 e 1960 a negritude cearense era segundo essa branquitude uma pura ilusão, não havendo nenhuma presença negra significativa no Estado.
Esses discursos criados pela intelectualidade cearense para definir a identidade do povo tornaram-se os regimes de verdade sobre o negro no Ceará. No decorrer de um século e meio o projeto de fabricação de um Ceará branco e de invenção da Terra da Luz irá atuar de forma implacável sobre a negritude cearense.
Os brancos das elites começaram impondo sua verdade sobre o protagonismo nas lutas abolicionistas, começaram apagando a presença e os nomes dos militantes negros no combate à escravidão, depois inventaram o mito da escravidão branda, forjaram a ideologia do escravizador filantropo e amigo do escravizado, em seguida engendraram o discurso do Ceará como clareira étnica no interior da confusão das raças que era o Brasil, daí passaram à ideia de que a mestiçagem no Ceará se dera principalmente da união do elemento indígena com o elemento branco, predominando no entanto o sangue branco e qualidades brancas europeias nessa fusão, finalmente alcançaram alienar os negros cearenses de sua própria negritude.
Para alijar os negros cearenses de suas identidades negras a branquitude do Ceará utilizou o aparato político e policial da república autoritária brasileira. Assim, empreendeu-se um combate intenso a todas as manifestações identitárias negras do Ceará. Maracatus foram perseguidos, terreiros de umbanda e candomblé eram invadidos e fechados, irmandades de homens pretos e pardos eram dissolvidas, ternos de congos eram proibidos, os bumba-meu-boi eram alvos de campanhas difamatórias.
No decorrer do século XX, procurou-se impedir qualquer presença de negritude no Ceará, pois as manifestações identitárias negras apareciam para as elites econômicas, políticas e intelectuais como um escárnio, uma forma de impedir que eles efetivassem seus projetos políticos de embranquecimento do Ceará e de construção de sua imagem narcísica de um Ceará branco e civilizado.
É por isso que escritores como Oswaldo Barroso e Djacir Menezes argumentam em seus escritos que as influências negras vistas no Ceará não são genuinamente cearenses, elas teriam sido trazidas de outros estados e, portanto, não faziam parte da identidade cearense. É como espaço eminentemente branco e de características predominantemente europeias que a branquitude cearense ver o Estado.
Como dissemos no início o artigo Origem do cearense: nórdicos superam índios e negros na genética, ecoa a ideologia da branquitude do Ceará que ao longo da história vem procurando criar para si uma imagem e uma autoimagem narcísica alienando a população negra de suas identidades. Para alimentar essa visão de si os brancos inventaram a Terra da Luz e vão ao extremo de negar a presença negra no Ceará.
Os dados do censo do IBGE de 2022 informam que 72,5% dos cearenses se autodeclaram negros, este dado por si só põe por terra todo o projeto de negação do Ceará negro forjado pela intelectualidade do Instituto do Ceará, como também invalida o argumento da origem viking dos cearenses defendida por Parsifal Barroso na década de 1960 e que o artigo do Diário do Nordeste de 27 de julho de 2020 procura propagar através de uma narrativa que mais uma vez se esforça para negar a negritude do Ceará e aproximar as elites do Estado da representação que ela quer fazer de si mesmo, branca, europeia e eugênica.
BIBLIOGRAFIA:
CATUNDA, Joaquim: Estudos para a história do Ceará, Editora da Câmara dos Deputados, Brasília, 2012.
OLIVEIRA, João Batista Perdigão de. Revista do Instituto do Ceará, ano 2, tomo I, Fortaleza, 1888.
OLIVEIRA, Pedro Alberto. Revista do Instituto do Ceará, ano 97, Tomo I, Fortaleza, 1984.
