
Por Carlos César Pereira de Sousa
Prof. da rede pública do estado do Ceará, historiador e escritor
Na década de 1970 a cidade de Milagres na região do Cariri cearense possuía cerca de 20.000 habitantes, era uma das cidades mais pobres do estado do Ceará, sua economia era fundamentada na agricultura canavieira, criação de gado e cotonicultura. A concentração de renda excluía milhares de trabalhadores e seus filhos das escassas possiblidades de saída da miséria em que viviam historicamente no Vale do Cariri.
Ao longo do século XX muitas escolas haviam sido abertas e fechadas no município, mas tais escolas como a do padre Maranhão, da professora Rita Marcionília, ou do grupo escolar de Dona Priscila Bezerra, além de terem existência fugaz, também eram restritas àqueles que podiam pagar para estudar. Na década de 1930, as filhas de Santa Tereza acolheram ao chamado de algumas famílias ricas e autoridades de Milagres e fundaram o Colégio Santa Terezinha, que prestou importantes serviços à educação no município, mas ainda era uma instituição restrita aos pagantes, os filhos das famílias ricas de Milagres também poderiam ser encaminhados para estudar em Crato, Juazeiro, Barbalha ou Cajazeiras.
Nos fins da década de 1950 o prefeito dr. Sebastião e o cônego Padre Misael Gomes conseguiram trazer para Milagres as Filhas de Santana que fundaram o Patronato e Escola Normal Dona Zefinha Gomes, que passou a oferecer educação formal de primeiro e segundo graus para às moças e posteriormente rapazes pertencentes as poucas famílias que podiam pagar para receber instrução. Na década de 1960, a inauguração do Colégio Wilson Gonçalves, escola pública que ofertava educação de 1ª a 4ª série possibilitou que estudantes provindos das classes trabalhadoras pobres de Milagres recebessem instrução gratuita, mas o Patronato Dona Zefinha Gomes continuaria até fins da década de 1970 como a única instituição de ensino de Milagres a oferecer o ensino de primeiro grau 5ª a 8ª série.

Na década de 1970 o poder público municipal construiu com recursos federais várias escolas públicas de ensino primário na zona urbana e em algumas áreas rurais de Milagres. Esta decisão permitiu ofertar mais vagas nas escolas e consequentemente ampliou o número de filhos de trabalhadores na escola, mas ainda assim o analfabetismo era um problema grave no município. Segundo os dados do censo de 1980 havia em Milagres 76,8% de pessoas analfabetas no começo dessa década. Numa cidade cuja população é historicamente de maioria negra tais índices mostram o nível de exclusão social, política e econômica em que viviam os milagrenses durante todo o século XX.
É nesse contexto que na segunda metade da década de 1970, um grupo de educadoras de Milagres inicia sua luta pela construção de uma escola pública que ofertasse aos filhos dos trabalhadores pobres e negros do município escolarização e educação que os permitisse romper o ciclo da pobreza e se constituírem cidadãos brasileiros. As lutas das professoras Maria Euda Albuquerque, Maria Figueredo Morais e Maria Zuíla Grangeiro Tavares, deram frutos e em 1978, sob muitas expectativas foi criada a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais.
A criação da Escola Dona Antônia Lindalva de Morais foi um importante marco na educação do município de Milagres, pois ela foi a primeira instituição pública a ofertar o primeiro e depois o segundo grau e isto significava que os filhos dos trabalhadores pobres do município não teriam mais que parar de estudar na 4ª série, estes jovens teriam agora condições de continuar seus estudos, ampliando assim sua bagagem de conhecimentos e podendo ocupar posições com mais qualificações e possiblidades de ascensão social na sociedade brasileira extremamente desigual e concentradora de renda.
Podemos compreender que a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais nasceu de um projeto de democratização da educação e expansão do ensino e da escolarização para os filhos dos trabalhadores pobres que viviam marginalizados na miséria e no analfabetismo que os impediam de romper o círculo vicioso da pobreza. A ideia de democratizar a escola e permitir que os estudantes pobres de Milagres também tivessem acesso ao ensino de segundo grau e assim passassem a disputar melhores posições econômicas, políticas e socais em Milagres foi a ideia fundamental que levou as educadoras Maria Euda Albuquerque, Maria Figueredo Morais e Maria Zuíla Grangeiro Tavares a provocarem os poderes públicos estaduais e municipais e assim convencerem os donos do poder a construírem a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais.
A atuação política do prefeito Elísio Leite de Araújo e Antenor Ferreira Lins foi igualmente significativa. Esses homens, com suas habilidades de políticos que conheciam bem os mecanismos e interesses da política estadual, colaboraram decisivamente nas negociações que levaram à decisão governamental que permitiu a criação da Escola Dona Antônia Lindalva de Morais em 1978. Sabiam estes, o prefeito Elísio Leite e o empresário Antenor Lins o quanto a criação de uma escola pública de segundo grau em Milagres seria importante para o fortalecimento econômico da cidade, pois haveria maior número de pessoas com elevada instrução no município e isto contribuiria para o desenvolvimento local.
Desse modo, a articulação política desses homens e o ideal de uma educação pública democrática das educadoras se conjugaram e esta aliança mostrou-se proveitosa, pois em 23 de março de 1978 a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais foi inaugurada e começava a sua longa jornada de serviços a democracia brasileira. De lá para cá já são quarenta e cinco anos de atuação pedagógica que promovem a democracia dentro e fora da cultura escolar e transformam vidas dentro e fora dos muros da escola.
Esta trajetória nunca foi fácil. Desde os primeiros tempos de sua história, a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais precisou enfrentar enormes dificuldades para oferecer educação pública de qualidade aos filhos dos trabalhadores de Milagres. Nos primeiros anos de existência já enfrentava um problema que passados quatro décadas ainda atormenta a sua comunidade escolar, este problema é a falta de espaço e investimentos públicos para ampliar e melhorar a oferta de ensino e escolarização aos estudantes pobres.
Nos primeiros cinco anos de existência, a escassez de espaço adequado para abrigar o número cada vez mais crescente de estudantes obrigava a escola trabalhar sempre acima do seu limite de capacidade. Salas de aula lotadas, falta de salas de aula, banheiros adequados, cozinha, áreas de convivência e lazer, ausência de espaços de aprendizagens com o mínimo de conforto aos estudantes, de funcionários e muitas vezes de um corpo docente dignamente qualificado foram problemas enfrentados pela Escola Dona Antônia Lindalva de Morais nesses quarenta e cinco anos.
Mas tais problemas nunca permitiram que as educadoras fundadoras se desesperassem e abandonassem seu projeto de uma educação pública e democrática em Milagres. À medida que os problemas foram aparecendo ainda na década de 1980, essas educadoras e toda a comunidade escolar Dona Antônia Lindalva de Morais foram se mobilizando para fortalecer o sonho de uma escola que formava cidadão e transformava vidas. Mobilizações políticas e altruísticas de estudantes, professores, funcionários, pais e gestores tornaram-se uma das características mais marcantes dessa escola ao longo de sua história.
Para atender às demandas pedagógicas diante da escassez de recursos materiais, a comunidade escolar Dona Antônia Lindalva de Morais uniu-se para suprir as carências da escola. Projetos como a Festa do Caju, Merenda Solidária, Escola minha, escola do meu filho, Amigos da escola, Superação na escola, sempre uniram pais, estudantes, professores, funcionários e a gestão da escola para tentar minimizar as dificuldades enfrentadas por esta instituição pública de ensino que sempre priorizou uma educação democrática e inclusiva.
Nos últimos anos da década de 1980, a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais passou a ofertar o ensino científico, atual ensino médio. Este fato representou uma conquista de fundamental importância para os filhos dos trabalhadores pobres de Milagres, pois agora teriam a possibilidade de concluir o ensino básico numa escola pública. A Escola Dona Antônia Lindalva de Morais seria por mais de duas décadas a única escola pública de segundo grau de Milagres. Da mesma forma que a sobrevivência da Escola Dona Antônia Lindalva de Morais não havia sido fácil na sua primeira década de existência, os anos de 1990 também seriam de árduas lutas para garantir sua atuação e permanência como uma instituição que educava gratuitamente milhares de filhos dos trabalhadores pobres de Milagres.
Na década de 1990, a escassez de recursos materiais para a manutenção da escola e mesmo sua adequação para receber uma massa crescente de estudantes pobres que estavam procurando cada vez mais intensamente ocupar os bancos escolares, desencadearam dificuldades enormes para a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais. A construção de novas salas de aula foi necessária, a reconstrução de espaços pedagógicos, a adoção de novos turnos de aula, mesmo assim a superlotação das salas eram uma constante e os problemas de infraestruturas se avolumaram. Faltavam laboratórios, biblioteca, quadra poliesportiva, salas de aula, banheiros adequados, abastecimento de água, merenda escolar, carteiras. Também faltavam materiais pedagógicos como: livros, papel, máquinas de datilografias, copiadoras, computadores, havia uma enorme carência de professores e muitos dos que haviam sido contratados não tinham a devida qualificação para a docência.

As dificuldades foram enormes, mas o projeto Escola Dona Antônia Lindalva de Morais completou vinte anos em 1998 e se mantinha mais vivo que nunca. A cidade de Milagres havia abraçado esta instituição e mesmo reconhecendo suas enormes dificuldades para garantir educação aos filhos dos trabalhadores de Milagres ao longo dessas duas décadas de existência sabia da importância e relevância do “estadual” na vida e na história do município. Assim a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais continuou fazendo história e transformando vidas no novo século e novo milênio que se iniciou em 2001.
A década de 2000 principiou com novos desafios para o “estadual”. Com um número cada vez mais crescente de estudantes no ensino médio, a escola começou um processo progressivo de transição para ofertar apenas o ensino médio, deixando o ensino fundamental a cargo apenas das escolas municipais. Mas esta transição levaria quase uma década para se efetivar. Enquanto isso, a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais iria tentando buscar recursos para melhorar sua infraestrutura e transformar-se exclusivamente numa escola de ensino médio, o que exigiria dela mais equipamentos pedagógicos e um corpo docente mais qualificado.
Sem espaço suficiente para acolher mais de um milhar de estudantes no ensino médio a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais precisou funcionar até o final da década de 2000 com salas de aula descentralizadas, isto com anexos que funcionavam em prédios cedidos pela administração pública municipal ou pelo estado do Ceará. Além disso, precisava ofertar o ensino médio noturno, pois a demanda por escolarização era maior do que a oferta de vagas em Milagres.
Apesar de alguns importantes investimentos públicos nas escolas no decorrer da década de 2000, os sucessivos governos do estado do Ceará não atendiam a contento à crescente demanda das escolas. O número de estudantes dentro das salas de aula era enorme, mas a escassez de recursos impedia que os educadores e as instituições públicas que ofertavam o ensino médio promovessem uma educação de qualidade. Esse problema acentuar-se-ia no período 2010 a 2020 com a política do governo do Estado do Ceará de criação das escolas profissionalizantes modelo. A adoção desse projeto de escolas profissionalizantes ainda no primeiro mandato do governo de Cid Ferreira Gomes levaria a Secretaria de Educação do Estado do Ceará a investir alto numa educação padrão Banco Mundial e desinvestir nas escolas regulares que viram seus recursos financeiros minguarem ao longo da década, como podemos observar no quadro que mostra os baixos valores investidos na Escola Dona Antônia Lindalva de Morais no período.
A década de 2010 foi um período de transformações na Escola Dona Antônia Lindalva de Morais. Os baixos investimentos impediram a escola de adequar sua infraestrutura para melhor atender os estudantes pobres. Ao mesmo tempo, esta política de desinvestimento do governo estadual nas escolas regulares levou a comunidade escolar a compreender que a história da Escola Dona Antônia Lindalva de Morais sempre foi uma história de resistência política e foram essas lutas que garantiram que a instituição completasse quarenta anos em 2018 servindo a classe trabalhadora de Milagres e a democracia brasileira. Nesse período, a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais se rearticulou politicamente e, além das lutas por investimentos em sua infraestrutura, adotou novas pautas políticas e compromissos com a democracia.
Em 2015, fez-se escola promotora da igualdade de gênero e ganhou reconhecimento nacional do ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos que premiou a inciativa da Escola Dona Antônia Lindalva de Morais em desenvolver práticas pedagógicas que procuravam promover a igualdade entre as pessoas independentemente do seu gênero, sexualidade ou raça. As pautas antirracistas foram igualmente se intensificando no cotidiano da cultura escola dessa instituição e ela passou a promover um ensino voltado para o combate ao racismo. Em 2020, a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais foi selecionada entre dez escolas braseiras por suas boas práticas em educação antirracista, nesse ano a ONG’s Criativos na Escola escreveu que o projeto Juventude Negra: movendo estruturas desenvolvido pela escola era uma política de efetivo combate ao racismo na sociedade brasileira.
No ano de 2021 a comunidade escolar Dona Antônia Lindalva de Morais reuniu-se em colegiado e decidiu aderir ao programa escolas em tempo integral do estado do Ceará. Esta adesão foi fundamental para que o “Estadual” passe a receber mais investimentos na nova década e assim poder atender aos novos desafios e demandas do novo ensino médio e das novas gerações de estudantes do século XXI.
Ao completar quarenta e sete anos de existência em 2025, a Escola Dona Antônia Lindalva de Morais comemora igualmente seu quadragésimo quinto aniversário de serviços prestados à democracia brasileira, são mais quatro décadas fazendo história e transformando vidas.
