…a menina era de cor morena clara, cabelos louros e lisos, nariz um pouco aquilino, olhos castanhos pardos, de aparência franzina trajando vestimentas paupérrimas. Era impúbere… (Relato de Dona Maria). Francisca Maria do Socorro, imagem gerada por inteligência artificial.
Por Carlos César Pereira de Sousa
(Professor da EMMTI Dona Antônia Lindalva de Morais, Historiador e Escritor)
No dia 10 de novembro de 2020 a população do município de Milagres cidade da região do Cariri no Estado do Ceará foi abalada por um crime bárbaro que vitimou perante centenas de testemunhas a jovem Cícera Samires dos Santos Souza.
O crime ocorreu dentro de um estabelecimento comercial no centro da cidade e foi perpetrado pelo ex-companheiro da jovem, uma morte anunciada pelo próprio assassino, pois dias antes do crime este já vinha cometendo uma série de violências contra a vítima. A própria Cícera Samires denunciara tais violências que tinham se iniciado quando do término do relacionamento abusivo pelo qual ela passara com o autor do delito.
As violências que principiaram com perseguições, destruição de objetos pessoais de Samires, ataques morais e psicológicos contra a jovem culminou com o seu assassinato em local público e diante de inúmeras testemunhas.
O fato de o criminoso praticar seu ato feminicida contra Cícera Samires dos Santos Souza diante de testemunhas e numa casa comercial demonstra não somente a ousadia do assassino, mas principalmente a sua convicção de que o crime ficaria impune, pois ele acreditava-se dono do corpo e da vida de Samires e como tal poderia dele dispor, violentando-o, possuindo-o e finalmente tirando-lhe a vida.
Essa mentalidade masculina que se crer na posse dos corpos e das vidas das mulheres permeia a estrutura patriarcal da sociedade brasileira como um todo. Na ocasião em que o assassinato público de Samires foi perpetrado o discurso misógino e de potencialização máxima do domínio masculino sobre os corpos e vidas femininas estava no poder da república. Homens brancos, filhos da elite latifundiária ou proveniente das classes aburguesadas do nosso país impuseram seus discursos violentos e atentatórios contra os direitos humanos, contra os direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos indígenas.
Homens que se orgulham de subir na tribuna do Congresso Nacional e usar o parlamento para vociferar suas falas misóginas, homofóbicas, racistas e antidemocráticas. Homens que se envaidecem de publicar nas redes sociais ou escrever poetagens em que espalham suas ideias violentas, homens violentos que atraem para si enormes séquitos de adoradores e repetidores de suas injúrias contra mulheres, negros, indígenas e homossexuais.
Essa casta de indivíduos do sexo masculino que ascendeu ao poder com um discurso declaradamente violento em 2018 se crer inatingível pela lei, se crer igualmente destinado a impedir que os valores do patriarcado e que a suposta moral da masculinidade seja elidida. Foi esse tipo de homem que assassinou Samires em 2020 no município de Milagres, foi este tipo de homem que assassinou 1.467 mulheres no Brasil ao longo do ano de 2024, todos eles casos relacionados com a violência de gênero, é ainda este tipo de homem violento e misógino que a cada dez minutos mata uma mulher no nosso país.
A certeza da impunidade ou das condenações parciais por seus crimes faz com que esses homens violentos cometam seus crimes publicamente sem temerem qualquer tipo de punição legal ou social. A opinião geral é que o corpo da mulher pertence mesmo a homem.
Inicialmente ele é um corpo que pertence ao pai ou esposo, filhas e esposas têm seus corpos tutelados pelo chefe da casa. O casamento ou relacionamento amoroso não liberta os corpos das jovens, apenas transfere a tutela dos seus corpos para os maridos, companheiros ou namorados abusivos.
Quando essas meninas, isto é essas mulheres não aceitam tais tutelas são logo julgadas e postas no ostracismo pela sociedade patriarcal que somos nós. Seus corpos então passam a ser regulados pelo código civil, pela constituição federal, pelo código penal, pelo código de ética médica, pelas igrejas, pela mídia, pela indústria cultural ou pelo mercado de bens de consumo.
Enfim, nossa sociedade patriarcal não dar condições de possibilidade para a libertação feminina. A mulher está condicionada a seguir uma série de códigos de conduta e de subjetivações masculinas e o Brasil é particularmente prolífico em criar e impor tais códigos sobre todos os aspectos da existência feminina.
Mas o município de Milagres, lugar aonde a vida de Cícera Samires dos Santos Souza foi ceifada publicamente carrega sobre si a mácula de outra morte igualmente bárbara e até o presente impune. Em 2020, a mulher negra Samires foi morta, e essa foi uma morte que causou enorme comoção na cidade, mulheres milagrense se levantaram clamando por justiça, por acolhimento à sua dor e principalmente políticas de combate a toda e qualquer violência de gênero. E em 1943 uma outra mulher, a adolescente Francisca Maria do Socorro também foi brutalmente assassinada.
Essas duas mortes distam oitenta anos entre si, mas ambas se entrelaçam, pois foram perpetradas pelo mesmo tipo de assassino, isto é, homens violentos cuja mão assassina encontra-se vinculada ao patriarcado brasileiro. O patriarcado que se assume publicamente nos tempos atuais como o único capaz de tutelar os corpos e mentes das mulheres tem raízes profundas no nosso passado histórico.
Quando a menina Francisca Maria do Socorro foi estuprada e assassinada na periferia da cidade de Milagres em 07 de dezembro de 1943 o Brasil vivia sob o regime ditatorial de Getúlio Dorneles Vargas, éramos uma república fascista na América do Sul, defendíamos o extermínio de seres humanos nos campos de concentração nazista da Europa, não podemos esquecer que foi o ditador Getúlio Vargas quem enviou a cidadã brasileira Olga Benário Prestes para a Alemanha nazista e portanto, o estado brasileiro é responsável diretamente pela sua execução na câmara de gás de Hitler.
Francisca Maria do Socorro nasceu e viveu até seus 14 anos numa sociedade machista e patriarcal. O código civil de 1916 escrito a várias mãos masculinas determinava que a mulher antes do casamento fossem submissas exclusivamente ao chefe da família, pai ou irmãos que assumiria total reponsabilidade por ela até que esta viesse a contrair matrimônio quando passaria às mãos do marido.
Com o casamento a mulher seria então considerada incapaz, pois todos os aspectos da sua vida, materiais, mentais e socais seriam tutelados pelo esposo:
Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
(Código Civil de 1916, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm).
Percebe-se que o poder masculino sobre existência da mulher brasileira estabelecido pela legislação de 1916 tinha como principal objetivo manter a hegemonia do patriarcado impedindo assim qualquer mudança na estrutura social e política hegemonicamente masculina.
Francisca Maria do Socorro nasceu no princípio da década de 1930 no município de Milagres, nesse período a política do Ceará e do Brasil passava por uma intensa efervescência devido à quebra das alianças oligárquicas ocasionadas pela Revolução de 1930. No Cariri cearense os coronéis que haviam passado as três primeiras décadas do século XX se digladiando entre si pelo controle do poder local agora estavam em conflito com os novos atores da política estadual e federal.
Mas essas lutas pelo poder não mascaravam nenhuma de seus intentos, elas eram batalhas travadas entre velhos latifundiários contra os novos aspirantes ao poder. Homens cujo objetivo maior era a autopreservação e o acúmulo de forças, mando e privilégios nas suas mãos. No município de Milagres não foi diferente. Cidade comandada por homens donos de vastos latifúndios desde o século XIX, esteve durante duas primeiras décadas do século XX sob o poder autocrático do coronel Domingos Leite Furtado e de seu braço direito o major e jagunço José Inácio da Sousa (o Zé Inácio do Barro).
Na década de 1930 período da infância de Francisca Maria do Socorro o poder passara das mãos do coronel Raimundo Alves Pereira, para o dissidente da República dos Coronéis João Fechine que foi escolhido pelos vencedores da Revolução de 1930 no Ceará como prefeito de Milagres. Este seria deposto em 1934 quando os velhos oligarcas do Ceará voltaram ao poder com o apoio da Liga Eleitoral Católica (LEC). Assim já no ano de 1935 a facção dos Alves Pereira já recuperara seu mando sobre o município.
Cidade de configurações eminentemente patriarcais, a história de Milagres pode ser contada como um longo capítulo sobre a invisibilização das mulheres e das múltiplas estratégias do patriarcado para silenciá-las ou impor-lhes a tutela masculina.
Assim foi quando se inventou no começo do século XX a famigerada lenda de Sousa Presa e da Bela Índia. Estória execrável que se propagou pela cidade através de professores, esquetes teatrais, monumentos públicos, textos em almanaques, recontos e foi parar até nos símbolos do município como a bandeira e o hino. Uma estória que impõe a violência de um bandeirante branco fictício sobre uma mulher indígena que teria se deixado seduzir pelo bom português superior e a ele se aliado para pôr fim ao seu povo Kariri habitante ancestral do Vale do Riacho dos Porcos. A velha lengalenga do branco belo e bom, da índia seduzida e dos dois associando-se contra a barbárie dos silvícolas canibais.
Mulheres milagrense como Praxedes Furtado de Lacerda verdadeira chefe política do município na década de 1920 foi esquecida, outras como Dona Filomena, senhora de mando político e dona de sua vida, também foi esquecida. Há também a figura imprescindível de Dona Maria Ribeiro do Nascimento, mulher negra que foi uma importante liderança religiosa e uma voz da resistência cultural das ancestralidades negras em Milagres, outra voz não menos importante foi a de dona Dionísia Severo, mulher indígena que viveu curando a cidade através de suas pajelanças.
Todas elas mulheres esquecidas, apagadas pela violência do mando patriarcal.
Foi esse espaço ocupado pelo poder discricionário do patriarcado que Francisca Maria do Socorro habitou entre 1930 e 1943. Filha de Maria Júlia Correia, mulher pobre, habitante do Serrote, área de escassa povoação nos arredores da sede do município, era o lugar onde se instalavam as famílias abaixo da linha da miséria de Milagres, aquelas que não viviam na zona rural, nesse período cerca de 80% da população do município habitava as áreas rurais do Vale do Riacho dos Porcos.
Maria Júlia Correia vivia num casebre de barro e palha no dito lugar chamado Serrote com a filha Francisca Maria do Socorro e um filho. Segundo os relatos da época também moravam por ali Clotilde tia da menina e uma avó de Francisca do Socorro.
O Serrote era lugar sem saneamento e praticamente invisível para o poder público, pois os relatos do tempo informam que os moradores desse espaço precisavam se abastecerem da água de uma nascente e um córrego que começava na área de brejos no sopé do dito Serrote. Além disso, esses mesmos moradores precisavam usar o matagal que crescia em volta de suas casas para fazerem suas necessidades fisiológicas.
O cotidiano de Francisca do Socorro era perpassado pelos afazeres domésticos, os mandados da mãe, da tia e da avó. Como criança pobre de um município cujas terras que produziam a riqueza local estavam nas mãos dos velhos mandatários do vale ela não tinha direitos.

Desenho da menina Francisca do Socorro gerado por IA.
Francisca Maria do Socorro não tinha direito de ir à escola, na década de 1940 já funcionava em Milagres o Colégio Santa Terezinha instalado nos meados da década de 1930 no prédio da antiga Casa de Caridade, mas era uma escola restrita aos que podiam pagar, era principalmente restrita às meninas das famílias abastadas da cidade, Francisca do Socorro era pobre:
…vi assim, a meninazinha (sic). 10 anos, 9 a 10 né, uma galeguinha, era galeguinha assim, desgrenhada, pobrezinha que não tinha nada, só tinha água no pote. Vivia numa choupanazinha e a mãezinha dela tinha chegado não sei de onde. Eu sei que eles vinham, eles não eram daqui não viu. Eu sei que eles moravam aqui, mas não eram natural (sic) daqui. (Depoimento de Dona Maria coletado pela professora Maria de Lourdes Gonçalves Guimarães, em 2012).
Francisca Maria do Socorro também não tinha direito a proteção da sua pessoa, pois vigorava no Brasil a ditadura do Estado Novo, o Código Civil de 1916, todos eles instrumentos de poder da masculinidade, ela era uma menina pobre criada por uma mãe pobre, e logo se viu vítima da violência masculina.
O relato do inquérito aberto contra o criminoso informa que Francisca do Socorro já vinha sendo há algum tempo assediada pelo meliante. Segundo a mãe da menina no seu depoimento ela afirma que Elísio Pereira Maia vinha assediando sexualmente Francisca do Socorro bem antes do crime. O documento de autuação informa que:
Os antecedentes do denunciado formam um conjunto de indícios contra sua pessoa. Oito dias antes do fato, tentara contra o pudor de uma menor, naquelas imediações, não conseguindo, felizmente, realizar o seu intento, porque a isso se opusera a dita menor. A própria mãe de Francisca do Socorro declara que a filha, algumas vezes lhe dizia: “Mamãe o seu Elísio parece que não tem cerimônia, pois faz suas necessidades fisiológicas na minha frente, chegando mesmo a baixar-se quando por ali passo.” (fls. 6) (Processo de Francisca do Socorro in: Memória E Psicologia Social Revitalizando A Memória De Francisca Do Socorro, Maria de Lourdes Gonçalves Guimarães.)
As testemunhas ouvidas no processo relatam a presença constante de Elísio Pereira Maia no local do assassinato antes e durante a efetivação deste. O crime contra Francisca Maria do Socorro aconteceu no dia 07 de dezembro de 1943 quando a adolescente foi ao poço buscar água a mandado de sua mãe.
Os relatos do ocorrido nos informam que Francisca Maria do Socorro saiu de casa para fazer umas compras de carne no açougue, a menina desceu até as proximidades do centro da cidade onde comprou o que a mãe lhe incumbira e retornou a casa em seguida, mas ao passar pela residência da sua tia Clotilde Correia da Silva recebeu desta o recado da mãe que lhe pedia fosse com o pote de barro da avó buscar água no poço. A jovem tomou o vasilhame e se dirigiu à nascente. Como Francisca do Socorro se demorava a avó Francisca Maria da Luz achou que a jovem havia quebrado o pote e sugeriu à filha, mãe de Francisca do Socorro que fosse ao encontro da menina.
Maria Júlia Correia não encontrou a filha no caminho do poço, mas achou os cacos do pote quebrado, entrou no mato para tentar achar rastros da filha, mas o que viu foi o cadáver da menina. Estava estrangulada e com a garganta cortada a facão.
…com surpresa, a umas dez braças do local onde fora quebrado o pote, estava ensanguentado o cadáver de sua filha FRANCISCA MARIA DO SOCORRO, em estado de seminudez, apresentando grande golpe na região supralaríngea, produzido por instrumento perfurocortante. ((Processo de Francisca do Socorro in: Memória E Psicologia Social Revitalizando A Memória De Francisca Do Socorro, Maria de Lourdes Gonçalves Guimarães)
O assassinato de Francisca do Socorro logo causou grande comoção na cidade, dezenas de pessoas acorreram ao local do crime e rapidamente as opiniões gerais apontavam como sendo o assassino Elísio Pereira Maia, tanto devido aos seus precedentes, pois já vinha assediando Francisca do Socorro como também tentara abusar sexualmente de outra mulher nas proximidades do Serrote.
As autoridades locais foram instadas a punir o criminoso que foi imediatamente preso, este negou ter sido o autor do delito, mas as testemunhas insistiam que ele fora visto no local do assassinato da menina quando o crime acontecera. Preso na cadeia local logo o criminoso ganhou a simpatia de muitos, principalmente das pessoas que viviam na parte central da cidade, relatos da época informam que ele declamava canções pungentes na cadeia.
A prisão do acusado durou pouco, foi solto por falta de provas e logo se mudou de Milagres e do Ceará. Mas a memória do bárbaro assassinato de Francisca do Socorro ficou na população do Serrote, nas pessoas pobres do município. Eles ergueram uma cruz no local onde seu corpo fora encontrado e lá iam fazer suas promessas, levavam velas, santos e pedidos para a Cruz da Menina.
Houve resistências por parte da elite local em aceitar essa devoção popular à memória de uma adolescente que fora abusada sexualmente e depois degolada, mas o povo, as pessoas simples e pobres como Francisca do Socorro e sua família não desistiram da sua fé, mantiveram-se crentes na santidade da menina Francisca Maria do Socorro, e em torno de sua cruz foi se instalado toda uma comunidade, pessoas que eram marginalizadas, cujas vidas tinham sido arrastadas para a pobreza devido a concentração de rendas e terras nas mãos dos poucos privilegiados de Milagres.
Ainda hoje o assassinato de Francisca do Socorro é um estigma, uma ferida aberta na história de Milagres, sua morte e a impunidade desta mostra que a luta das mulheres do nosso município contra toda tipo de violência do patriarcado deve ser incessante. O lugar da sua morte atualmente é um espaço de resistência contra a violência de gênero em nosso país.