Texto escrito Carlos César Pereira de Sousa
Conforme despacho do governo da Província do Ceará datado do mês de julho de 1866, todas os delegados nomeados para as vilas e municípios da província deveriam formar um corpo de homens voluntários para embarcar em direção ao sul do Brasil a fim de defender a nação contra o presidente Solano López, ditador paraguaio que em fins de 1864 havia declarado guerra ao Império do Brasil ao invadir a Província do Mato Grosso.
Desenho do negro Mingu vestido com a indumentária dos combatentes da Guerra do Paraguai. (Desenho da professora Ana Ivyna Leite Lima)
A Guerra do Paraguai, como ficou conhecido o conflito entre Brasil, Argentina e Uruguai contra a república paraguaia começou em dezembro de 1864 e duraria até o ano de 1870. Foram mais de cinco anos de combates que ensanguentaram a América do Sul, provocando a morte de centenas de milhares de pessoas, tanto nos campos de batalha quanto nas cidades e povoados invadidos por um ou outro dos lados em combate.
A guerra começou com o exército brasileiro desestruturado, mal treinado, mal armado e principalmente com um número de soldados muito inferior ao necessário para infligir combates contra uma nação invasora de seu território. O Paraguai contava com um efetivo militar de 70 a 100 mil soldados, o Brasil com aproximadamente 16 mil homens aptos ao combate. Assim, em 14 de dezembro quando a guerra principiou, o exército paraguaio avançou rapidamente dentro do território do império brasileiro. As tropas de Solano López avançaram sobre o Mato Grosso e sobre o Rio Grande do Sul.
Percebendo o perigo representado por estas primeiras vitórias do exército paraguaio, o governo brasileiro procurou rapidamente deslocar para a área do conflito armamentos e soldados aquartelados nas demais províncias do império, convocou a Guarda Nacional e baixou um decreto ainda no princípio do mês de janeiro de 1865, solicitando que todas as províncias estimulassem um alistamento geral e não obrigatório de civis para servir no exército brasileiro como combatentes voluntários.
No início da guerra, a alta oficialidade do exército e da marinha brasileira, bem como a elite política nacional deixaram bem evidentes que preferiam que os Voluntários da Pátria fossem homens brancos, membros das melhores famílias de cada província ou quando muito homens livres e brancos pertencentes as classes médias de cada localidade. Com o desenrolar da guerra e as demonstrações de força e bom preparo militar do Paraguai que estava impondo derrotas aos exércitos da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai), ficou evidente que o império brasileiro precisava urgentemente de mais combatentes para fazer frente ao corpo militar paraguaio.
O alistamento de Voluntários da Pátria iniciado em 1865 não se mostraria suficiente para suprir as baixas do exército brasileiro, nem tampouco para fazer frente ao numeroso exército paraguaio. Além disso, o Brasil enfrentava um outro problema, os filhos da elite branca, ou mesmo aqueles homens brancos livres, os quais a alta oficialidade das forças armadas brasileiras queriam ver nos campos de batalha simplesmente se recusavam a dela participar ou fugiam a convocação que insistentemente lhes era feita.
Percebendo a falta de combatentes e cobrado pelos oficiais comandantes do exército e da marinha nacional para aumentar o efetivo brasileiro no combate a Solano López, o imperador Dom Pedro II, enviou ao conselho de estado em 1866, uma consulta sobre a possiblidade de se enviar homens escravizados devidamente alforriados para combater o Paraguai.
A proposta levantou grande celeuma no parlamento, os argumentos gerais eram contra, pois segundo os adversários de tal medida, a lavoura brasileira precisava da mão-de-obra escravizada para continuar produzindo. Outros alegavam que era muito ariscado armar escravos, pois estes podiam voltar-se contra o branco. Dizia-se que um numeroso exército de libertos […] seria um elemento perigoso no teatro das operações, e o seu alistamento poderia, dentro do Império, comover a população escrava, agitada não só pelos seus próprios instintos, mas ainda por instigação de agentes ocultos. (PARANHOS apud SCHWARCZ e STARLING, 2015).
Mas a posição do Conselho de Estado consultado pelo imperador foi que mediante o estabelecimento de determinadas condições para os alistamentos desses negros forros, deveriam sim ir para a guerra , desde que fossem comprados pelo estado, presenteados pelos seus proprietários ou em substituição a um branco que não pudesse ir para a guerra. A principal orientação dada pelo Conselho de Estado ao governo imperial era que os escravos que seguissem para os campos de batalha paraguaios deveriam ser homens entre 16 e 35 anos nascidos no Brasil.
Marcolino José Dias, o tenente negro que virou herói na Guerra do Paraguai. (Imagem da Internet)
Feitas as devidas ressalvas e elaborados o corpo da lei que regulamentaria a participação dos escravizados alforriados na guerra do Brasil contra o Paraguai encaminhou-se para as províncias a orientação para a formação do corpo dos chamados Voluntários da Fortuna. Esse novo corpo de soldados seria formado por homens negros cuja liberdade fosse comprada pelo governo imperial, ou por subscrição de populares, como também por homens negros escravizados cujos senhores tivessem doado ao Império do Brasil para se engajarem na guerra.
Havia também entre esses Voluntários da Fortuna, homens que tinham sido obrigados pela lei ou escravizados convencidos a trocarem de lugar com seus senhores ou filhos desses senhores que se recusavam a ir para a área de combates. Eram também chamados de Voluntários da Fortuna os homens pobres livres que se engajaram no exército por causa do soldo. Desse modo dezenas de milhares de homens negros escravizados deixaram o trabalho nas lavouras ou o trabalho doméstico para lutar numa guerra que não era deles, e em nome de um país que não os reconhecia como cidadãos.
Quando em julho de 1866, a Câmara Municipal da Vila de Nossa Senhora dos Milagres recebeu a notificação por meio de um decreto publicado no jornal O Cearense, de que esta comarca precisava arregimentar no mínimo seis Voluntários da Pátria que deveriam ser encaminhados ao município do Crato para serem devidamente alistados e assim marcharem para o Recife onde embarcariam para o sul do Brasil, o delegado Jesus da Conceição Cunha assim se pronunciou em carta publicada no jornal de oposição A Constituição:
[…] Entende-se que a nação inteira está em perigo, que haja necessidade do combatente lá no Rio Grande, mas não é menos verdade que precisamos de nossos filhos também aqui nesta vila. Cada família compreende a emergência em que está nosso país, amamos nossa Majestade, e sobretudo nossa liberdade nacional. Não vamos nos opor, mas como coronel da Guarda Nacional nesta Vila de Milagres, informo que não disponho de voluntários que possam deixar suas vidas para se oferecerem como soldados. (A Constituição, disponível em: http://memoria.bn.br, acesso em 13 de maio de 2023.)
O delegado Jesus da Conceição Cunha era uma liderança política ligada ao Partido Conservador em Milagres, e a sua carta foi logo respondida por uma outra missiva, desta vez publicada no jornal do Partido Liberal, O Cearense. A carta assinada por um pseudônimo, que se anunciava como combatente da autocracia do Cunha em Milagres, um certo Zé Pequi, (como se autointitula), denunciava que o Jesus da Conceição Cunha recusava-se a cumprir a determinação do governo para formar um corpo de Voluntários da Pátria em Milagres porque estava “mancomunado com os maiorais da terra, pra se manterem no mando e desmando do lugar, perseguindo e matando quantos não aceitassem sua dictadura (sic)” (O Cearense, disponível em: http://memoria.bn.br).
Ao que parece o delegado Jesus da Conceição Cunha foi instado pelo governo da Província do Ceará a arregimentar homens para compor o corpo de Voluntários da Pátria em Milagres. Em dezembro de 1866, publica-se no jornal O Cearense e Dom Pedro II, um informativo dando conta de que o delegado de Milagres encaminhou para o Crato, cinco homens voluntários que deveriam ser embarcados para o Paraguai.
Um relatório da Câmara Municipal de Milagres enviado ao presidente da Província do Ceará em janeiro de 1867, informa que dos cinco voluntários encaminhado ao Crato eram:
...Dois eram irmão, Filipe Simplício, Manuel Simplício criminosos de roubo de gado no Cuncas e no Podimirim (anistiados). Este outro é um escravo forro por alcunha Mingu cria do alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo e os dois outros, Pedro Dantas Linhares de Souza e João Telles Dantas Quintal, moços de boas famílias, que se haviam apresentado de mui boa vontade após excelente sermão do pároco José Castriciano que pregara em favor dos alevantamentos (sic) dos ânimos patrióticos do povo da Vila de Nossa Senhora dos Milagres. (Relatório dos Presidentes de Província, disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital, acesso em 13 de maio de 2023).
O “voluntário” que nos interessa aqui é especificamente este escravo forro do alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo. Ao se apresentar para ser alistado como “voluntário” da fortuna, o escravizado alforriado deveria escolher um sobrenome, mas pelas informações da Câmara de Milagres, sabemos que o preto em questão era conhecido na vila por Mingu.
Era um escravo de ganho do dito alferes, pois em 1861 o mesmo Belarmino Ferreira Lino de Melo, publicou no jornal o Araripe, impresso na cidade do Crato um anúncio em que alugava um negro “de muito boa aparência, constando os seus 19 anos, era bom pra tudo, mas principalmente para serviços domésticos, no entanto servia também como pajem e cuidava de criações.” (O Araripe, disponível em: https://bndigital.bn.br/acervo-digital/araripe/213306). Pouco menos de um ano após este anúncio de aluguel, outro foi publicado no mesmo jornal pelo alferes, mas desta vez reportando a fuga de Mingu:
No dia 08 de março do ano próximo fugio da casa do sr. Antônio Felizardo Lins, alfaiate nesta Villa de Nossa Senhora dos Milagres, um escravo preto que atende por nome Mingu, 20 annos de edade, boa altura, corpo esguio, bons dentes, cabelos carapinha, pés chatos., fala macia e andar vagaroso. O mesmo se intitula forro e a primeira vez que fugio foi pego trabalhando como cavouqueiro na Vila de Telha aonde seu pai se encontra desde que foi vendido para um senhor seu, fazendeiro nas terras daquela povoação. Quem o prender entregar sob a guarda do sr. João Alves Bezerra de Menezes que terá boa recompensa. Informa-se que quem o esconder responderá diante da lei. (O Araripe, disponível em https://bndigital.bn.br/acervo-digital/araripe/213309, acesso em 13 de maio de 2023).
De acordo com o anúncio de 1862, não era a primeira vez que Mingu fugia a escravização, fugira outra vez e se escondera na Vila de Telha (hoje Iguatu) onde fora recapturado. Também esta não seria a última vez que o alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo publicaria anúncio informando a fuga de Mingu e oferecendo recompensa por sua captura. Em 1866 novo anúncio, desta vez no jornal A Constituição do qual o alferes era correspondente:
ESCRAVO FUGIDO
Fugio do abaixo assignado, no dia 08 do corrente, o seu escravo de nome Mingu, alto, corpo regular, cabelo carapinho, dentadura perfeita, muito corrido, pouca barba, mete-se a conversador, indo vestido com camiza e ceroula de algodãozinho. Quem captura este escravo, entregando-o no Milagres ao seu legítimo senhor, no Icó a exmª dona Silvana Moreira dos Santos e no Crato ao sr. dr. Francisco Ribeiro Montezuma, será generosamente recompensado.
Icó, 08 de novembro de 1866.
Belarmino Ferreira Lino de Melo (A Constituição, disponível em: http://memoria.bn.br).
Como podemos perceber a partir dos anúncios publicados pelo alferes, Mingu era um homem escravizado que se rebelava contra a sua escravização fugindo ao seu escravizador sempre que encontrava oportunidade. Mesmo recapturado em suas fugas, Mingu não desistia de se fazer homem livre.
Provavelmente foram as fugas constantes do escravizado Mingu que levaram o alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo a aceitar o preço oferecido pelo estado por meio do seu amigo e aliado político Jesus da Conceição Cunha, delegado de Milagres entre 1857 e 1879 e vender Mingu para ser um “voluntário” da fortuna na Guerra do Paraguai.
Ao preto Mingu, como a tantos outros pretos escravizados que tiveram a liberdade comparada pelo governo imperial em troca de irem arriscar suas vidas numa guerra combatida por um país que não os considerava cidadãos parecia paradoxal, mas acima de tudo para quem desejava ser livre, e não servir a nenhum senhor escravocrata, a liberdade acenada pela carta de alforria do imperador era bastante preciosa.
Nada sabemos sobre o cotidiano de Mingu nos campos de batalha do sul do Brasil, mas de forma geral, como já foi descrito por Francisco Doratioto no seu livro “Maldita Guerra”, os soldados negros eram tratados como inferiores diante dos voluntários brancos. Geralmente cabia a eles os piores serviços no campo de batalha e nos acampamentos militares. Limpar as latrinas, manter a limpeza, preparar os alimentos, recolher e sepultar os mortos, cavar valas, fazer a vigilância, servir de atalaias ou mensageiros. Muitos deles apenas faziam os serviços comuns daqueles que permaneciam ainda submetidos a escravidão.
Também descreve-se que esses pretos Voluntários da Fortuna eram tratados de forma vilipendiosa pela alta oficialidade da marinha e do exército brasileiro, como também da Argentina e Uruguai, pois sofriam todo tipo de discriminação e preconceitos, além de serem vistos como inferiores aos soldados brancos e vítimas do racismo que imperava nas forças armadas.
Em Milagres pouco se acreditava na volta dos Voluntários da Fortuna para a vila. Em 1868, o jornal O Cearense rejubilava-se com o retorno dos “ilustres heróis da Vila de Milagres” que voltavam condecorados da guerra, eram os primos Pedro Dantas Linhares de Souza e João Telles Dantas Quintal, “filhos da mesma família que não recusaram ceder seus varões para servirem a nação.” A nota laudatória nada falava de Mingu ou dos irmãos Simplício, estes últimos “voluntários” forçados.
Somente em 1874, quatro anos após o fim da Guerra do Paraguai aparece mais uma vez o nome do negro Mingu. Parece que retornara a Vila de Milagres recentemente, mas o que o põe em evidência na vila não é a sua volta, trata-se de uma contenda entre o padre José Castriciano inimigo declarado do delegado Jesus da Conceição Cunha e seus aliados políticos.
Numa carta escrita para O Cearense, José Castriciano denuncia o delegado como notório protetor de criminosos e relata que:
…ultimamente o Cunha tem estado ocupado perseguindo um crioulo forro que foi do alferes Belarmino Ferreira Lino de Melo. […], o preto é um infeliz que tendo sido soldado voltou para viver com a mãe, procurou minha protecção contra os desatinos do delegado que pretende entregá-lo ao seu antigo senhor. (O Cearense, disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=709506&Pesq=volunt%c3%a1rio%20da%20p%c3%a1tria&pagfis=7048, acesso em 13 de maio de 2023).
Com a proteção do padre José Castriciano e outras pessoas de Milagres, o negro Mingu garantiu sua liberdade contra as tentativas de reescravização do seu antigo senhor aliado do delegado.
Ao que parece Mingu retornou a Milagres com algum dinheiro, pois pesquisando no livro de espólios da secretaria paroquial de Milagres (1865 – 1880), consta uma informação importante sobre ele. Informa-se que este entregou sob a guarda do padre José Castriciano o valor necessário para a alforria da preta Joana Ireneu, sua mãe e que este padre em 1875, obteve do fazendeiro José Franklin de Lima a liberdade desta.
A última informação escrita sobre Mingu encontra-se no livro de batismo da mesma Secretaria Paroquial de Milagres (1871 – 1884), onde registra-se que em 1879, deu-se o batismo de Izael Ireneu filho de Domingo Ireneu e Firmina Viríssimo, sendo madrinha a avó Joana Ireneu e padrinho o sr. Francisco de Sá Batinga.
Depois disso temos apenas os relatos orais da própria família Irineu, cujo patriarca hoje com 93 anos de idade relata recordar-se de uma história de família sobre desse seu parente que foi pra “uma” guerra , vários membros dessa família ainda hoje reside numa localidade distante cerca de 10 km da sede do município de Milagres, numa localidade conhecida até a década de 1990 como Vilinha Negra, mas atualmente chamada oficialmente de Vila Mingu.
Ao voltar da Guerra do Paraguai os soldados negros passaram a questionar a manutenção do regime escravocrata num país em que eles foram defender com a própria vida. (Imagem da Internet)
REFERÊNCIAS
JUNIOR, Heraldino Santos : O dilema político sobre a participação do negro na guerra do Paraguai nos anos 1864 a 1869, disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br
http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital
ARQUIVOS CONULTADOS
Arquivo Público do Ceará
Arquivo da Secretaria Paroquial de Milagres
Arquivo do Laboratório de Ciências Humanas da E.E.M.T.I. Dona Antônia Lindalva de Morais.